A Cigarra e a Formiga - Fábula de La Fontaine

Les Fables de La Fontaine illustrées par Gustave Doré, Bibliotèque nationale de France
A Cigarra e a Formiga é uma das fábulas mais conhecidas. Conforme o livro A tradição da fábula (São Paulo, 2003), organizado por Maria Celeste Dezotti, ela já aparece entre as fábulas atribuídas a Esopo (c. século VI a.C) e na coletânea de Valerius Babrius (c. século I d.C). Mas foi com Jean de La Fontaine (1621-1695) que as fábulas ficaram populares na Europa. No século XIX, o grande século da gravura, o infatigável Paul Gustave Doré (1832-1883) celebrizou com suas ilustrações as Fábulas de La Fontaine, em monumental edição francesa, de 1867, obra que depois foi traduzida e editada em diversos países. A seguir, apresentamos a fábula A Cigarra e a Formiga, traduzida por Bocage, na luxuosa edição portuguesa de 1886.
Gustave Doré. Fábulas de La Fontaine. A Cigarra e a Formiga. Lisboa: David Corazzi, 1886,Tomo I, p. 3.
Gustave Doré. Fábulas de La Fontaine. A Cigarra e a Formiga. Lisboa: David Corazzi, 1886,Tomo I, p. 4.

Interessante notar a humanização dos personagens da fábula, tidos por Gustave Doré, ao que parece, uma mãe envolvida com os afazeres da casa e dos filhos, e uma uma jovem com seu violão que bate à porta.

Gustave Doré. Fábulas de La Fontaine. A Cigarra e a Formiga. Lisboa: David Corazzi, 1886,Tomo I, p. 5

Gustave Doré: peintre, dessinateur et graveur français, Bibliotèque nationale de France

Esta fábula lembra a leitores e ouvintes da necessidade humana de se preparar para o inverno, durante o verão e o outono, estações de muito trabalho, de colheita de grãos, frutas e legumes, em suma, de abundância. Pois nos países de clima temperado, como os da Europa e América do Norte, o inverno (que vai de dezembro a março) é o período em que a terra descansa, coberta de neve, enquanto o sol derrama raios fraquinhos sobre os dias bem curtos. Época de baixas temperaturas, noites longas e alimento escasso. Por isso, no verão (de junho a setembro) e no outono (de setembro a dezembro) é preciso estocar lenha e preservar a futura comida: fazer geléias, ressecar frutas e grãos, salgar carnes ou colocá-las na gordura ou no sol, fazer queijos para maturarem, estocar a comida dos animais. É preciso trabalhar no verão e no outono para garantir a sobrevivência no frio rigoroso do inverno. E esperar... até que chegue novamente a primavera e recomece o ciclo da vida. Na tradição clássica, é comum comparar as fases da vida humana com as estações do ano.

(Vail, USA, 2013 - Foto de Marcia Razzini)

O livro organizado por Maria Celeste C. Dezotti, A Tradição da Fábula, traz interessante estudo comparativo entre as fábulas clássicas, com diferentes versões, ao longo dos séculos. Reproduzimos abaixo duas versões de A Cigarra e A Formiga, de Esopo e de Bábrio.

A Cigarra e as formigas, de Esopo.
     Era inverno e as formigas estavam arejando o trigo molhado, quando uma cigarra faminta pôs-se a pedir alimento. As formigas, então, lhe disseram: "Por que é que, no verão, você também não recolheu alimento?" E ela: "Mas eu não fiquei à toa! Ao contrário, eu cantava doces melodias!" Então elas lhe disseram, com um sorriso: "Mas se você flauteava no verão, dance no inverno!"
     A fábula mostra que as pessoas não devem descuidar de nenhum afazer, para não se afligirem nem correrem riscos.
(Maria Celeste Dezotti org., A tradição da fábula. São Paulo, Imprensa Oficial, 2003, p. 43.) 


A Cigarra e as formigas, de Valerius Babrius (ou Bábrio).
No inverno uma formiga arrastava de dentro da toca
o trigo para arejar, que ela havia estocado no verão.
Então uma cigarra faminta pôs-se a suplicar-lhe
que lhe desse algum alimento, para continuar viva.
"Ora, o que estiveste fazendo", disse, "nesse verão?"
"Não estive à toa. Ao contrário, passei o tempo todo a cantar"
A rir a formiga vai guardando no interior o trigo
e diz: "Se flauteaste no verão, dança no inverno!"
(Maria Celeste Dezotti org., A tradição da fábula. São Paulo, Imprensa Oficial, 2003, p. 98.) 


Em Provérbios 6, 6-11, no Antigo Testamento, encontramos a seguinte passagem:
Vai, ó preguiçoso, ter com a formiga,
observa seu proceder e torna-te sábio:
ela não tem chefe,
nem inspetor, nem mestre;
prepara no verão sua provisão,
apanha no tempo da ceifa sua comida.
Até quando, ó preguiçoso, dormirás?
Quando te levantarás de teu sono?
Um pouco para dormir, outro pouco para dormitar,
outro pouco para cruzar as mãos no seu leito
e a indigência virá sobre ti como um ladrão;
a pobreza, como um homem armado.


Monteiro Lobato (1882-1948) publicou em 1922, Fábulas, um livro escolar no qual deu nova roupagem a várias fábulas de Esopo, Fedro e La Fontaine. Porém, Lobato não se limitou a traduzir e adaptar fábulas clássicas, como a maioria dos escritores, ele as reescreveu, usando elementos bem brasileiros, diminutivos, onomatopeias e tantos outros recursos poéticos que agradam as crianças. 

O tom jocoso (sobre alguma autoridade da época) lhe trouxe críticas e dissabores dos adultos, mas também lhe garantiu a afeição das crianças. 

Inovador e irreverente para a época, Monteiro Lobato por vezes invertia a célebre moral da história, que vinha no final das fábulas. Sua versão de A Cigarra e a Formiga, por exemplo, que ele denominou A Cigarra e as duas Formigas, foi arrematada com a moral invertida, a favor da Cigarra.



Fábulas, Monteiro Lobato, 1.ed. 1922.

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