Fábulas Orientais

DISSE Dabshalim, rei da Índia, a Báidaba, príncipe dos filósofos: "Conta-me uma história que ilustre o caso de dois amigos que o mentiroso e intrigante desune, semeando o ódio entre eles." Disse Báidaba: — Quando dois amigos têm a desgraça de cair nas redes de um homem falso e enganador, desunem-se e separam-se.

Assim começa Calila e Dimnauma coleção de narrativas de origem indiana (provavelmente do século III a.C.que chegou até o ocidente pela tradução árabe de Ibn Al-MukafaParalelamente ao diálogo entre o rei e o filósofo, segue outro, entre
"dois chacais, chamados Calila e Dimna [...] ambos atilados e vivos, sendo Dimna o mais perverso e o mais astuto."
Calila e Dimna, por sua vez, enredam o leão contra o boi Chátraba (e vice-versa), formando um segundo plano narrativo. Junto a esses dois fios condutores são encaixadas pequenas narrativas independentes, que procuram ilustrar e corroborar os dois planos, compondo uma efabulação de encaixe, em cadeia, ou caixa de surpresas, forma narrativa oriental, sendo As mil e uma noites a obra mais conhecida no Ocidente. Na edição brasileira de Calila e Dimna (1975) foram colocados subtítulos (em caixa alta) para identificar as histórias menores. Veja, a seguir, um trecho do livro:

          Retrucou Dimna: "Não estou de acordo com teu propósito, porque não se deve travar luta com o inimigo, senão depois que se tenham esgotado todos os seus recursos. Pois ir à luta sem estar preparado é uma estupidez e uma leviandade. Dizem os sábios: ‘Não desdenhes um inimigo, mesmo que seja débil e insignificante, sobretudo se é sagaz, porque com a sagacidade ele pode contra muitos.’ Agora, que não será com o leão, com toda a sua audácia e vigor? Ao que desdenha alguém porque é débil, sucede o que sucedeu ao guarda do mar com a tarambola.”
 O que lhe sucedeu? Perguntou Chátraba.
O GUARDA DO MAR E A TARAMBOLA
Disse Dimna:
          — Conta-se que uma tarambola macho tinha sua morada à beira-mar, onde vivia sua fêmea. Chegada a época de pôr os ovos, disse a fêmea ao macho: “Chegou o momento de pôr os ovos; procura, pois, um lugar seguro onde eu possa fazê-lo.” Disse o macho: “Seja aqui mesmo, neste lugar, já que por aqui temos água e comida, e, ademais, nestes lugares estão reunidas as coisas amáveis e prazenteiras.” Disse a fêmea: “Pensa melhor no que dizes. Aqui estamos em perigo, porque, se o mar chega a avançar, levará nossos filhotes.” Replicou o macho: “Não creio que o mar nos invada, pelo temor que sente do vigia e o vigia não se atreve contra mim.” Retorquiu a fêmea: “Quão estúpidas são tuas palavras! Não te envergonham tuas ameaças contra o guardião do mar e as tuas bravatas comigo, sabendo quem és? Como é certo o que se diz, que ninguém se conhece menos a si mesmo do que o homem! Escuta as minhas palavras, e abandonemos este lugar, antes que suceda o que não nos agradará”.
 
          Mas o macho negou-se a atender à sua fêmea. E, depois de uma vã e longa insistência, a fêmea lhe disse: “A quem não faz caso de seus amigos e companheiros, sucede o que sucedeu à tartaruga que não escutou os conselhos de seus vizinhos.”
           Qual é essa história? Perguntou o macho.
          OS DOIS PATOS E A TARTARUGA
          Disse a fêmea:
Conta-se que viviam num arroio dois patos e uma tartaruga, entre os quais, por causa da vizinhança, se estabeleceu amizade. Um dia, minguaram as águas daquele arroio, e os patos resolveram emigrar. Despediram-se da tartaruga, dizendo-lhe: “A paz seja contigo, que nós nos vamos!”
Disse a tartaruga: “A água mingou também para esta desditosa, que não consegue viver sem água. Imaginai uma maneira de levar-me convosco.”
Não podemos levar-te conosco, retrucaram os patos, a menos que te comprometas, uma vez no ar, a não responder coisa alguma às pessoas que te vejam e se refiram a ti.
A tartaruga comprometeu-se a não proferir palavra. Em seguida, perguntou: “Mas como podereis transportar-me?”
Morderás o centro de uma vara, responderam os patos, e cada um de nós morderá uma das extremidades, e nos levantaremos contigo no ar.
Gostou a tartaruga da ideia, e os dois patos a carregaram e levantaram vôo com ela. Assim que as pessoas a viram, exclamaram: “Que prodígio! Uma tartaruga entre dois patos, no ar!”
Ao ouvir a tartaruga tais palavras e observar o assombro que causava, disse: “Que Deus lhes rebente os olhos!” Mas assim que abriu a boca, caiu na terra e morreu.
Disse o macho: “Escutei tua história, mas não tens que temer o mar.”
Então, a fêmea pôs os ovos no lugar em que viviam. E o guarda do mar, que tinha ouvido a discussão das tarambolas, lançou as águas do mar, e estas carregaram os filhotes e o ninho. O guarda os apanhou e escondeu.
Ao perder os filhotes, disse a fêmea ao macho: “Eu sabia, desde o princípio, que isto iria acontecer, e que o pouco conhecimento que tens de ti mesmo iria voltar-se contra nós. Já podes ver os males que sofremos.”
— O que sustentei a princípio, afirmou o macho, sustentarei até o fim. Se o mar nos agrediu, já verás como procederei.
E, com audácia, apresentou-se ante seus amigos e levou-lhes suas queixas contra o guarda do mar. E concluiu: “Sois meus amigos: em vós deposito minhas esperanças. Ajudai-me, porque talvez amanhã chegueis a sofrer as injustiças que agora sofro.”
— Estamos dispostos a apoiar-te, disseram-lhe os amigos. Mas que podemos fazer contra o guarda do mar?
— Ó reino das aves! exclamou a tarambola. Nossa rainha é a águia Fênix. Chamá-la-emos aos gritos e lhe elevaremos nossas súplicas, até que nos ouça, e assim se vingará, por nós, do guarda do mar.
Todos aplaudiram, e, aos gritos, chamaram a águia, até que esta lhes apareceu e perguntou: “Por que estais reunidos, e por que me chamais?”
Expressaram-lhe, então, suas queixas contra o guardião do mar, contando o que tinha feito com a tarambola, e acrescentaram: “Sois nossa governante, e o rei que vos cavalga é mais forte do que o guardião do mar. Invocai seu apoio em nosso favor.”
Assim procedeu a águia Fênix e, atendendo a seu pedido, o rei dirigiu-se ao guardião do mar para propor-lhe a luta. E o guardião, ao comprovar sua inferioridade em face do poder daquele rei, apressou-se em devolver os filhotes da tarambola.
Contei esta história, prosseguiu Dimna, para que saibas que ninguém deve expor a vida, quando não é suficientemente forte, porque, se perece, dirão: “Cavou sua própria cova”, e, se triunfa, dirão: “A sorte o favoreceu.” O homem sensato usa de todos os recursos antes de ir à luta, e deixa esta para depois de esgotar todos os meios pacíficos a seu alcance e toda a sua paciência.

Calila e Dimna. Ibn Al-Mukafa. Rio de Janeiro: Associação Cultural Gibran, 1975, p. 37-39.

[...]

A Pomba, a Raposa e a Garça
DISSE o rei Dabshalim ao filósofo Báidaba:
Escutei essa história; conta-me agora o caso daquele que sabe aconselhar aos outros e é incapaz de aconselhar-se a si mesmo.
Disse o filósofo:
Este caso está ilustrado na história da pomba, a raposa e a garça.
E como é essa história? perguntou o rei.
Disse o filósofo:
Conta-se que uma pomba costumava chocar seus ovos na copa de uma palmeira tão alta que se perdia céu adentro; e, dada tão elevada altura, a construção do ninho causava à pomba duras fadigas.
Uma vez concluída a construção do ninho, a pomba punha seus ovos e chocava-os. Mas quando os filhotes estavam crescendo, uma raposa, atenta a seus movimentos, parava aos pés da palmeira e ameaçava a pomba de subir até ela. A pomba, cheia de medo, lhe arrojava seus filhotes.
Um dia em que tinha dois borrachos já em idade de atrair a voracidade da raposa, chegou uma garça e pousou na copa da palmeira. Vendo a aflição da pomba, perguntou-lhe:
Ó pomba, que te aconteceu que te vejo tão triste?
Sou vítima de uma raposa, que tem feito minha desgraça, respondeu a pomba. Vem invariavelmente cada vez que meus filhotes estão crescidos, e me ameaça. E me infunde tanto medo que lhe arrojo meus filhotes.
Se ela voltar, aconselhou a garça, dize-lhe: “Não te atiro meus filhotes, e sobe, se quiseres arriscar a vida.”
Depois de dar à pomba este conselho, a garça voou para a margem de um rio.
Pouco depois, apareceu a raposa, parou ao pé da palmeira e lançou contra a pomba seus habituais gritos e ameaças; mas ela respondeu com as palavras que a garça lhe ensinara.
Conta-me, disse a raposa, quem te ensinou estas coisas?
Uma garça, respondeu a pomba.
Sem proferir mais uma palavra, a raposa marchou à procura da garça, e não tardou a vê-la parada à margem do rio. Aproximando-se dela, perguntou:
Dize-me, ó garça, se o vento te bate pela direita, onde colocas a cabeça?
À minha esquerda, respondeu a garça.
E se te bate pela esquerda?
À minha direita, respondeu a garça.
E se o vento sopra de todas as partes e te bate de todos os lados, tornou a perguntar a raposa, onde colocas a cabeça?
Debaixo das minhas asas, respondeu a garça.
E como podes colocá-la debaixo das asas? Não acho que isso seja possível.
É, sim, disse a garça.
Que coisa admirável! Deus preferiu o reino das aves a nós outros. Aprendeis numa hora o que não conseguimos aprender num ano; alcançais o que não alcançamos; e podeis, ante o frio e a tempestade, ocultar vossas cabeças debaixo das asas. Como, em verdade, sois afortunadas! Queres mostrar-me como procedes?
A garça introduziu a cabeça debaixo das asas. E a raposa precipitou-se sobre ela, agarrou-a, e disse: “Ó inimiga de ti mesma, sabes dar conselhos à pomba e ensinar-lhe a se proteger, mas és incapaz de fazer o mesmo em teu próprio proveito, caindo assim nas garras de teu inimigo.”
Então, matou a garça e comeu-a.

Calila e Dimna. Ibn Al-Mukafa. Rio de Janeiro: Associação Cultural Gibran, 1975, p. 198-200.



As belas ilustrações são do manuscrito árabe de Calila e Dimna, datado de 1310, obra raríssima toda disponibilizada online, pela BibliotecaDigital Mundial, que informa:


Kalila e Dimna

Kalila wa-Dimna (Kalila e Dimna) é uma coleção de grande circulação de fábulas orientais, de origem indiana, composta em sânscrito, possivelmente, já no século III a.C. As fábulas foram traduzidas para o árabe no século VIII pelo persa Ibn al-Muqaffa ', um escritor altamente educado e cortesão influente. Até hoje a tradução al-Muqaffa é considerada uma obra-prima inigualável de prosa artística árabe, e várias traduções para as línguas europeias e orientais que datam dos séculos X a XIV derivam de sua versão. Influências da tradução de al-Muqaffa também são evidentes em obras literárias ocidentais bastante importantes, como as Fabulas de La Fontaine Reinecke Fuchs de Goethe. Kalila wa-Dimna é uma espécie de espelho para príncipes. Questões da vida social e da sabedoria principesca são explicadas com base em histórias tiradas do reino animal. Este manuscrito muito conhecido, produzido no Egito por volta de 1310, é, provavelmente, o mais velho dos quatro manuscrito árabes Kalila wa-Dimna do século XIV. Um dos poucos textos em árabe a serem ilustrados, este contém 73 miniaturas de alta qualidade artística e são, portanto, um importante monumento de decoração de livro árabe.


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