Ilustração 2 - Chapeuzinho Amarelo - Chico Buarque e Donatella Berlendis

O poder da ilustração - Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque e Donatella Berlendis
Em Dezembro de 1979, foi lançado Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque, por Berlendis e Vertecchia Editores, que então estreavam no mercado editorial brasileiro. Não há créditos das ilustrações, embora indique na página de rosto Donatella Berlendis pelo "Planejamento gráfico", abaixo do nome do autor. À primeira vista, o texto parece simples, mas ele vai muito além da recriação dos contos tradicionais e da paródia. Chapeuzinho Amarelo é uma fábula moderna, sobre o medo e sobre como superá-lo.
Importante lembrar que em Agosto de 1979 foi promulgada a Lei da Anistia, que reverteu punições do regime militar e marcou o início da abertura e do processo de redemocratização do país. A música Tô Voltando (1979), de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós fez muito sucesso na voz de Simone e entoou o canto dos primeiros exilados no retorno ao Brasil. Nesse sentido, Chapeuzinho Amarelo parece saudar o momento de distensão política com a anistia. O combate ao regime militar (1964-1985) marcou a carreira e as produções de Chico Buarque, desde o início, sendo que algumas obras de sucesso foram censuradas pelo governo. É um artista multifacetado e premiado (música, letra, teatro, cinema, literatura) e sua obra de resistência política teve grande influência no cenário cultural brasileiro. A orientação de esquerda o mantém fiel a partidos que protagonizaram os maiores escândalos de corrupção (Mensalão e Operação Lava-Jato). Mas isso não diminui o valor de suas produções. Agora, deixemos o preâmbulo político e voltemos ao livro. 
No conjunto, texto, ilustrações e projeto gráfico: o livro é um primorA integração texto-imagem é perfeita, aliando texto ligeiro e rimado com ilustrações em preto-e-branco e alguns elementos em amarelo. A protagonista aparece na capa e na contra-capa. O chapéu, por metonímia, a representa na página de rosto e na última página do livro.
O cuidadoso projeto gráfico de Donatella Berlendis, que explora a página dupla com texto de um lado e imagem do outro, lembra o design futurista de Bruno Munari, que colocou em prática algumas teorias do design como arte em seus livros, sendo alguns dirigidos às crianças. Conheça algumas produções artísticas de Bruno Munari (1907-1998). Munari publicou várias versões de Chapeuzinho: Vermelho, Verde, Amarelo e Branco (Cappuccetto Verde e Cappuccetto Giallo, em 1972), depois reunidos em volume único. Os livros de Bruno Munari fizeram muito sucesso, tanto pela inovação como pelo design.

A página quase toda preenchida, à esquerda, com a ilustração da brincadeira de roda, contrasta com a protagonista, pequena, espremida no canto da página, do lado direito, consumida pelo medo. O rosto de Chapeuzinho aparece na capa, ocupando quase toda a página, imagem que se repete depois, com letras em caixa alta para reforçar suas características: medo, cor no chapéu, olhos pela metade, escondidos na base da página.

O texto segue o roteiro das narrativas tradicionais: apresentação, clímax e conclusão, mas elege o medo da menina como tema. E, ao contrário de Chapeuzinho Vermelho de Perrault e dos irmãos Grimm, cuja ação ascendente (ou ação desencadeante) é a jornada em direção à casa da avó, a Chapeuzinho de Chico Buarque se define pela não-ação, pelo medo paralisante. E é este sentimento "o medo mais que medonho" que vai crescer e se materializar no "medo do tal LOBO" (lobo, em caixa alta), levando ao clímax: o encontro de Chapeuzinho Amarelo com o lobo.
 Repetição, acumulação e gradação são os recursos estilísticos que o texto usa para dar dramaticidade ao encontro de Chapeuzinho com o lobo, cuja figura ocupa a página inteira. A hipérbole dirigida por enumeração e intertextualidade com o conto tradicional acrescenta certo efeito cômico à descrição do lobo: "bocão tão grande que era capaz de comer duas avós, um caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz e um chapéu de sobremesa".
A consequência do encontro é o ponto de virada da história. Chapeuzinho foi perdendo o medo, enquanto o lobo acumula apreensão e começa a se desmanchar: "O lobo ficou chateado [...] envergonhado, triste, murcho e branco azedo, porque um lobo, tirado o medo, é um arremedo de lobo".
E a próxima página destaca o desapontamento do lobo, em caixa alta, deixando assim para o leitor imaginar o lobo.
O lobo tenta reagir, mas é tarde, não tem volta. A imagem da menina (agora pulando amarelinha) se parece com aquela anterior, das três crianças na brincadeira de roda.
A transformação, em caixa alta, ocorre no significante, que agora aparece com as sílabas separadas LO-BO, repetido exaustivamente por três linhas que ocupam página dupla e, por inversão, a repetição culmina na mudança: BO-LO.
A valorização do efeito gráfico e sonoro remete à poesia concreta de Décio Pignatari, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e de Ferreira Gullar. Deste modo, o medo mudou de lado. Com a metamorfose LO-BO virou BO-LO, um bolo de letras, em caixa alta. Em seguida, na página que costuma trazer a ilustração, à direita, só tem letras, letras que também são imagens, agora muito grandes, grossas e coloridas.
Conflito resolvido e heroína transformada, sem medo, pronta para outras brincadeiras, inclusive a mesma brincadeira com a linguagem, de inverter sílabas ou partes de palavras: "a bruxa virou xabru", convidando o leitor a entrar na brincadeira também.
Tão inovador no conjunto texto-ilustração, o livro recebeu da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil o selo de "Altamente Recomendável", no mesmo ano em que foi lançado. Esse Chapeuzinho Amarelo de 1979 chegou à maioridade, teve 18 anos de sucesso, em 16 edições.

Em 1997 o livro sofreu drástica transformação: foi relançado pela Editora José Olympio, que mudou completamente o projeto gráfico e as ilustrações, agora do cartunista Ziraldo, trabalho que valeu a ele o premio Jabuti de Ilustração de 1998.
Ainda que as ilustrações de Ziraldo tragam ampla palheta de cores vibrantes ao livro, tendência que estava em alta no fim dos anos 90 e, apesar de seus traços caricaturais produzirem alguma graça e agradarem a leitores de história em quadrinhos, a mudança foi um desastre. O novo Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque e Ziraldo transfigurou as características da personagem, a tensão desapareceu, o medo foi substituído por expressões de dúvida
O texto ficou espremido, por vezes sufocado, no meio de imagens super coloridas que ocupam página dupla. As capitulares em vermelho no início de cada parte e falas em balões que não existiam antes apagaram o jogo com o texto e as letras em caixa alta.
A Chapeuzinho Amarelo de Ziraldo é um Menino Maluquinho (1980) de chapéu e vestido.

O Menino Maluquinho.png 
Em suma, embora o texto seja o mesmo, todo o jogo criativo e inovador com a linguagem e o espaço da página da versão de 1979 ficou perdido, resultando em um novo produto da cultura de massa, próximo de um gibi travestido de livro infantil, pronto para ser consumido e descartado. 

Só a reedição da versão de 1979 poderia reparar o erro, o que não ocorreu. Pelo contrário, em 2017, a editora Autêntica relançou o mesmo Chapeuzinho Amarelo de Chico e Ziraldo.

Há notícia, ainda, que o livro teve uma terceira versão, em Portugal, com ilustrações de André Letria, publicado em 2007 pela Quasi Edições.
Image result for chapeuzinho amarelo andre letria  
 edição portuguesa - Quasi Edições, 2007  

Leia o estudo de Adélia Bezerra de Menenes sobre o texto de Chapeuzinho Amarelo e outros chapeuzinhos, na revista Estudos Avançados, da USP, 2010. 

Comentários