Discussão 2 - "Leitura para..." não é literatura

Leitura para... modelar comportamentos... não é literatura infantil.
Imagine um grande tema da religião e da filosofia: a verdade, por exemplo. Como você acha que poderia ser a abordagem deste tema num livro de literatura para crianças? Por meio da ficção, em tom solene ou com bom humor e do ponto de vista da criança? 
Hans Christian Andersen com A Roupa Nova do Imperador, de 1837, e Carlo Collodi com seu Pinocchio, em 1881, fizeram isso, não é mesmo?
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Veja reportagem de 19/05/2019 da CBS-News sobre Pinocchio, de Collodi.

Já o livro "Não fui eu" aprendendo sobre honestidade, de Brian Moses e Mike Gordon (Editora Scipione, 1999, em inglês, "It wasn't me" - Learning about honesty, Wayland, 1997) não recorre à ficção, mas a cenas descritivas do cotidiano da criança e de sua família para impor o discurso pedagógico, na coleção "aprendendo sobre". 

Este tipo de discurso e de publicação são muito antigos, sempre fizeram parte da lógica de produção dos livros escolares. Dito de outro modo, a instituição patrocinadora da educação sempre exerceu controle sobre os discursos e publicações de uso didático, quer seja no ensino público, privado, leigo ou religioso. 

Na escola, o discurso informativo das diversas áreas do conhecimento está sempre disputando espaço com discursos e textos morais e instrutivos que visam inculcar valores e modelar comportamentos. Obviamente nenhum texto é isento ou imparcial, inclusive este post. O que se defende aqui é a impossibilidade de discursos e textos serem neutros. Portanto, os textos e os livros, assim como suas análises, estão sempre condicionados a uma determinada época, visão de mundo e ideias.

Agora, deixemos os paratextos e a a sociologia da leitura de lado e voltemos à análise do livro. Nota-se que as ilustrações de Mike Gordon assumem papel preponderante na obra. Delicadas e muito bem humoradas às vezes elas caminham no sentido contrário do texto, isto é, atuam como uma espécie de justificativa complacente para as atitudes que o texto condena ou tenta combater. Nesse sentido, a expressão pictórica de olhos e bocas concentram a força narrativa na construção dos sentidos e funciona como anzol para captar a simpatia do leitor.Outras vezes a imagem vai além do texto, acrescentando detalhes às cenas ou modulando as situações. Os personagens não têm nome, não estão individualizados, o que reforça o caráter genérico do texto.Uma menina é a protagonista do livro, mas para focalizar as consequências da mentira, o castigo recai inicialmente em outro personagem, no caso um menino, cujas cenas não parecem estar ligadas com as anteriores.Ditos populares também aparecem para reforçar o caráter geral das regras, embora várias situações cotidianas agora vão se concentrar na protagonista.E, como quase todo discurso pedagógico, tenta interferir na educação dada pelos pais a seus filhos, o que resulta, no limite, em tentativa de controle sobre a família. Interessante notar que ao focalizar os adultos em atitudes condenadas pelo livro, apenas pai e mãe são retratados. Professores e outras autoridades da vida infantil são ignorados.O longo percurso moralizante se encerra com a peroração, exortando o pequeno leitor à ação heroica, de não faltar com a verdade, custe o que custar.E reforça a regra contrastando a própria dor com a dor alheia, ao alternar os pontos de vista, primeiro da menina (p. 26) e depois dos amigos dela (p. 27) diante da mentira:E conclui com o reforço positivo da premiação simbólica, concedendo à menina "troféus para a honestidade", o que, junto com a noção de ato heroico de "coragem para ser honesto" (p. 25) passa a impressão que a regra preconizada é exceção. Essa talvez seja a principal razão do livro existir: a necessidade de tutelar as crianças e seus pais.Se o livro convence ou não crianças e adultos tem pouca importância diante da confusão que promove, ao abordar a ficção como um tipo mentira, ainda que seja para advertir "pais e professores" sobre a incapacidade das crianças para distingui-las:

 "É essencial que as crianças percebam que mentir pode ter importância maior ou menor, dependendo da situação, do motivo, da consequência. Às vezes, não compreendem isso e têm dificuldade em avaliar as pequenas mentiras, aquelas que são contadas por brincadeira, para divertir, ou mesmo as que constituem criações da imaginação" (p.31)

E o pior, propõe que as narrativas da imaginação sejam submetidas ao escrutínio da verificação imediata e da explicação.
"É interessante examinar com elas textos em que aborde essa questão de diferentes maneiras: lendas, histórias fantasiosas como as do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, piadas, notícias seguidas de desmentidos, etc".
Ora, o livro é que não consegue reconhecer a natureza diversa entre ficção e informação. Como se sabe, com Walter Benjamin:
"Metade da arte narrativa está em evitar explicações.[...] O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação." ("O narrador" In: Magia e técnica, arte e política. v. 1, SP, Brasiliense, 1993, p. 203) 
O poder da ficção sempre ultrapassa a barreira do tempo e do espaço. O texto é datado, mas a interpretação é livre. 

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